Devemos ser mais cachorros.



A valiosa lição que esses peludos têm a nos ensinar pode salvar o homem de suas angústias.
“O cachorro é o melhor amigo do homem” é uma frase, no mínimo, hedionda. Estes animais, que se dão tão bem com os homens e são tão companheiros, não podem ter essa definição por ela dizer mais a respeito da natureza do homem do que do cachorro. Ao afirmar isso, comprovamos que para culminar o termo amizade necessariamente precisamos de alguém que seja mais limitado que nós, e o pior: subordinado. Mostra que não aceitamos o igual e sem aceitar isso não existe o respeito em sua plenitude. Porém, confundir essa ligação que o ser humano tem ao seu cachorro é compreensível sob alguns aspectos. Há detalhes nesse vínculo que deveriam ser observados com mais atenção para que desta forma possamos entender algo que está entrando em extinção em uma época de intensa individualidade: o outro.

A experiência de ter um cachorro, ou um animal de estimação, pode ser transformadora se você parar para analisar essa conexão sob a ótica da alteridade, aprofundando essa experiência para o caráter humano. Dessa forma, é possível entender a verossimilhança que há no dito popular que vincula o cão como melhor amigo do homem e quais são os elementos responsáveis por esta formação.
O primeiro elo que se dá entre estas duas espécies é a confiança. Este ponto é algo a ser conquistado, não é algo pré-estabelecido logo no começo da relação. O homem não chega ao animal e diz “agora você deve confiar em mim”, mas isso faz parte de um processo. Para qualquer convívio em grupo, a confiança é o pilar fundamental que sustenta uma união. Tendo em vista um mundo de constantes frustrações, em que as expectativas são alimentadas de forma doentia pela mídia e até mesmo pela educação, este frágil atributo se torna quase que uma utopia, fomentando mais e mais a crescente individualidade.
Desconfiar é sinônimo de inteligência, enquanto a inocência da entrega é vista como uma fraqueza, ainda mais em nossa cultura em que os ‘espertos’ são aqueles que enganam e levam ‘mais’. É muito relativo esse ‘mais’, principalmente no âmbito das relações em que a troca que existe não é somatizada pela quantidade, e sim pela concordância.
Experimentamos cada vez mais um mundo onde a confiança é perdida, duvidamos das instituições, da polícia que deveria nos proteger, dos empregadores que nos logram e até do marketing e algumas estratégias que extrapolam o limite da ética conhecidas como storytelling, que usam histórias (quase sempre mentirosas) para diferenciar produtos através do apelo sentimental.
Desta reflexão nascem dois termos que são vitais para a construção de um contato íntegro, que são a estabilidade e a segurança. Perceba que, no campo humanitário, atribuímos o amor genuíno ao amor de mãe justamente porque estes dois termos estão bem fixos neste conceito. Na comunicação com os animais, as palavras não têm efeito, o que vale mais são as atitudes. Naturalmente, todo o animal é arisco frente ao desconhecido, porém o cachorro tem mais facilidade em “se entregar”. Sua inocência quase que pueril vê no bicho homem uma proteção, o cão é aberto a acreditar e, por isso, nos acolhe como seu protetor, dando em troca a sua intrínseca fidelidade, que é um dos fatores que embasa a dedicação quase que vitalícia que eles têm.
Um fato curioso é atentar-se à natureza deste animal, que veio do lobo antes de ser domesticado e virar essas dóceis criaturas. Vale comentar sobre um hábito deles que explicita bem esses valores. Entre os lobos, há uma hierarquia de matilha muito clara e definida, isso nos diz respeito da forma como eles administram o lado social de convívio com os seres da mesma espécie. Na disputa do líder da matilha, os mais fortes duelam em um confronto feroz que mede a força, enquanto todos os outros assistem a batalha para ver quem é o vencedor. A luta termina quando o outro desiste, ele faz isso deitando no chão e deixando a barriga para cima. Neste momento o confronto termina, o vencedor entende o recado e nunca mata o outro. Caso o vencedor, mesmo depois de o outro ter se rendido, atacá-lo, todo o bando vai pra cima do dominante, pois a matilha não se subordina a um líder que tenha esse tipo de atitude. Isso se chama respeito e é um traço inerente ao cão.
Por essa característica, podemos entender melhor as qualidades caninas que propiciaram o relacionamento com nossa espécie. A integridade indiscutível desses bichos cria a condição necessária para se estabelecer a união entre as espécies. Confiança entre os homens é algo extremamente complicado. Seres pensantes como nós têm dificuldade em confiar por sermos os únicos animais na natureza capazes de dissimular sentimentos. Um cachorro não sabe mentir, ele mostra os dentes, rosna, dá sinais antes de um ataque, já o bicho homem consegue sorrir antes de ser cruel, se passar por amigo antes de apunhalar. Albert Camus já nos dizia que “raramente confiamos naqueles que são melhores do que nós”, por isso, não há nenhuma nobreza em ser melhor amigo de um cão. O poeta Carlos Drummond de Andrade nos convida a sermos cachorros, dizendo que “a confiança é um ato de fé, e esta dispensa raciocínio”, explicitando a qualidade desses mamíferos canídeos.
Ainda no campo filosófico, “um ato de confiança dá paz e serenidade” como afirma Dostoievski, precisamos aprender com os cães o valor da fidelidade e do companheirismo. As palavras podem conduzir, mas apenas as atitudes são os motores que ativam a colaboração. Esse fator não é simplesmente racional. Nós, humanos, ao perceber sinais sociais liberamos o neuro-hormônio oxitocina, que tranquiliza e produz uma sensação de conexão empática com o outro. Temos muitos receptores de oxitocina em regiões cerebrais associadas às emoções e aos comportamentos sociais, como a amígdala, o hipotálamo, o bulbo olfativo e o córtex subgenual. Isso faz com que “baixemos a guarda”, a pressão arterial diminui, a musculatura relaxa e a ansiedade se reduz e fisicamente isso se reflete num leve calor nas bochechas. Ou seja, a confiança é um fator evolutivo essencial que vai contra a racionalidade do individualismo.
Qualquer adestrador de cães diz com propriedade que o que o animal precisa é segurança, o responsável tem que ter pulso firme e não se mostrar instável ao dar comandos, e o cachorro, por ser altamente instintivo, percebe as mais sutis variáveis de humor que não são perceptíveis para nós. Quando o dono passa segurança ao animal, ele se ‘subordina’ e ‘obedece’, na verdade esses termos podem ser trocados pela confiança, fazer um animal se sentir seguro é dar a estabilidade para que ele seja íntegro. Um grande amigo uma vez me disse algo que faz completamente sentido nesse contexto: amar é dizer sim. E é disso que precisamos se quisermos salvar nós mesmos do nosso egoísmo e medos. Existem dois sistemas nervosos no cérebro que são opostos. Um já citado, que é o que produz a oxitocina, e o outro mais primitivo, usado quando estamos desconfiados e ativa o sistema nervoso simpático pela adrenalina, estimulando a luta e a fuga, desencadeando a raiva e o medo. Os dois resultam em comportamentos, emocionais e fisiológicos, que transitam na direção do estresse ou do amor. Um inibe ao outro, então é possível afirmar que o amor intenso pode superar o medo e a raiva, por isso, dizer sim é importante, é uma escolha.
“Jamais o sol vê a sombra”, diz Leonardo Da Vinci, e o caminho pode ser bem esse. Certamente, o cachorro não pode e nem deve ser o melhor amigo do homem, mas ele tem muito que nos ensinar sobre a genuína amizade e essa experiência ser um atalho frutífero para vivermos nossas vidas em harmonia e respeito uns com os outros.

Via: Obvious